Druam

Druam tende a ser uma experiência "ficcional" em devir, escrita por Nelson Job, pesquisador transdisciplinar, autor do "Livro na Borogodança", do romance "Druam", entre outros. Site: www.nelsonjob.com.br

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8.3.13

Anestesias


"Memories of children's dreams
Lie, lifeless, fading, lifeless
Hand in hand with fear and shadows
Crying at the funeral party"
The Cure


Tô nessa cama da clínica, eles colocam a injeção de anestesia e me pedem pra contar de 100 para trás... o que é isso meudeusdocéu... tô vendo a minha vida inteira pela minha frente, agora sim, tá claro como eu vim parar aqui...


Quando eu tenho que arrasar, ponho um vestido vermelho. Bem decotado. Fui convidada pro casamento dele. Seu merdinha, tá casando... Pensei que isso nunca iria acontecer, ele dizendo que não pensava em “coabitar”  (olha a palavrinha mais metida a besta, típico!) com ninguém... Bom, vou fazer com que ele se arrependa na festa de casamento. Mas aí, ele diz “sim” pra noiva, sinto uma pequena vontade de morrer.

Na festa, olho pros convidados. As feias, de costume, me cumprimentam com aquele olhar de inveja educadamente disfarçado. Mas, na verdade, o meu decote não funciona mais pros bonitões como antigamente. Encontro minhas “amigas”. Vamos, como sempre, conversar sobre as novidades da literatura, da “universalidade” de Proust, da “profundidade” de Ponge, do “hermetismo” de Joyce; assim a gente se sente importante por alguns minutos. Vou "perdoar" todas as suas diárias pequenas traições - cometidas pelas nossas mais frívolas vaidades - e elas, as minhas. Nosso perdão é uma contingência social, apenas pra poder pertencer.

ele chega, com aquela “menina” insuportável. Ele me olha suavemente nos olhos. Não tem ternura, nem desejo. Ele até olha pro meu decote, mas, pela primeira vez, não identifico nenhum tesãozinho da parte dele. Seu aproximar me dá aquelas vertigens que eu finjo pra mim mesma já não existir há alguns anos. Olho pra maneira com que a menina pousa a cabeça em seu ombro, apaixonada, os olhos dele brilham de contentamento. Quando recebi o convite de casamento, pensei comigo, você ainda vai me comer muito, seu viadinho, de preferência na cama que ela dorme com você. Mas agora me dei conta que não vai mais acontecer. Vou pro banheiro. Tranco a porta. Tiro meu seio pra fora. Olho com horror a marca do tempo entre os peitos. Não tinha reparado até então. Decido que vou fazer cirurgia plástica semana que vem.

Largo o vinho e passo pro uísque, sabendo que isso sempre dá alguma merda. Tento dançar com ele na festa, e o filhodeumagrandessíssimaputa, é claro, me despista. Seduzo aquele babaca que sempre me azarou, o publicitário. Mais tarde, no motel, com uma dor de cabeça apocalíptica, o lápis preto borrado nos olhos e o esperma seco do babaca na minha coxa e barriga, vejo meu reflexo no teto: sou o rascunho turvo de algum desenho que eu nunca sonhei.

99, 98, 97... a imagem do meu filho com 10 anos, tenho que lembrar desse momento logo agora?

- Mamãe, porquê que você e o papai tão brigando? Porquê? Ele falou que a culpa é sua. Porquê que eu tô chorando??? Eu quero vocês dois juntos!!!

Aos quatorze, meu filho praticamente parou de falar comigo. Ele me culpa, mais ou menos com razão, da nossa família ter se destroçado. Que meu marido tentou de tudo: me perdoar, fazer aquelas minhas viagens excêntricas... fora o que ele não sabe e espero que nunca saiba. Eu dizia que o pai dele não é santo, mas isso não importava mais.

84, 83, 82... a enfermeira comenta as lágrimas no meu rosto, o doutor diz que é normal, pra continuar com os procedimentos. Aí vem aquele momento com ele, quando a gente parou de se encontrar, não, eu não quero lembrar, não disso, pelamordedeus!!!

A gente naquele restaurante, ai que saudade de quando a gente ia lá numa boa, ele falando, não eu não quero lembrar porra, não quero lembrar, ele dizia:
- VOCÊ NÃO...
por favor não quero, não quero,
- VOCÊ NÃO TÁ...
chega, chega, chega,
- VOCÊ NÃO TÁ SENDO...
pááááááraaaaaaaaaaa!!!!

76, 75, 74... já não era pra eu tá desacordada? Vou me lembrar de quando a gente tava junto...

Eu o encontrava, as mãos dele pelo meu corpo, os rastros das nossas peles se encontrando, era o suficiente pra me sentir em êxtase. Sempre exigi “recursos” na alcova - ele não tinha lá tantos, mas nunca precisou... Ouço sua voz melodiando meus ouvidos, as suas compreensões tão precisas que chegava a me irritar e maravilhar ao mesmo tempo. Depois do sexo - de acordo com suas queixas, aiaiai - eu imediatamente tentava me alienar com um olhar vazio pro teto. Era a dor de estar ali e não saber quando iria voltar. Era a apreensão daquele prazer inexplicável e do preço a se pagar por esse prazer que ele me proporcionava. Tentava matá-lo em mim, sabendo que estava matando meu melhor pedaço. Ninguém deveria ter o direito de ser o melhor pedaço de alguém.

(Doutor, doutor, ela não está respondendo bem... 
- Sim, parece alergia a anestesia, mas não entendo... os exames...)

50, 49, 48... Meu psiquiatra, queria ele aqui agora...

- Ainda preciso repetir? Você NÃO PODE misturar ansiolítico com uísque, já te falei um milhão de vezes...

44... eu prometo, nunca mais...

(Doutor, acho que ela não vai aguentar!)

41, 40, prometo, nem quero mais fazer essa merda dessa plástica, eu deveria ter olhado ele nos olhos e... ai, meu filho, me perdoa, por favor, não, num era pra ser assim, aiaiai queria tanto mais uma...
33, 32, 31.







2 comentários:

Lili disse...

Simplesmente genial....O que mais posso escrever diante do que li?
Estou ainda com a frase na minha frente "...sou o rascunho turvo de algum desenho que eu nunca sonhei."

Nelson Job disse...

Muitíssimo obrigado, Lili! Essa frase também me surpreendeu: foi uma grata surpresa, que não estava prevista e surgiu em pleno processo de escrita. Magias da literatura...