Druam

Druam tende a ser uma experiência "ficcional" em devir, escrita por Nelson Job, pesquisador transdisciplinar, autor do "Livro na Borogodança", do romance "Druam", entre outros. Site: www.nelsonjob.com.br

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23.12.12

Da negociação com meus demônios



“O comportamento da possessão tem um eixo sequencial – uma espécie de sintaxe – ao longo do qual se combinam, como estágios, o aparecimento inicial do espírito, as negociações complexas estabelecidas com ele e as festividades públicas nas quais ele anuncia sua identidade.”
                                                                                               Stuart Clark

“A vida é muito discordada. Tem partes. Tem artes. Tem as neblinas de Siruiz. Tem as caras todas do Cão, e as vertentes do viver.”
                                                                                       Guimarães Rosa


Que mundo é esse, afinal, que o despertar me convoca? Parei de ler jornais, me aposentei antecipadamente. As narrativas elencadas pra nos avisarem da pertinência dos valores não me convenciam mais, afinal. Mas minha vidinha simples é complexa pra caralho.

A alegria de Severino: meu porteiro me sorri largamente, isso me alivia, mas me deixa desconfiado de nós dois. O seu sorriso, aparentemente sincero, é uma frivolidade daqueles para quem o bife, a esposa e a criança fornecem a Base do Mundo. E eu? Fico aliviado por ser vizinho àquela constância?

Ali na praia, um grupo de pessoas, uns hippies reciclados, festeja a proximidade do fim do mundo. É impressionante os exercícios que alguns fazem para pertencer, nem que este pertencimento tenha como fetiche o seu fim. A expectativa da nova era, tanto aqui ou, no caso deles, em outro plano, me soa muito velha. O desejo do novo é a velhice da expectativa humana. Agora, emergir um novo, de fato, é outra coisa. A preguiça existencial da humanidade faz com que ela adie sempre a gravidez da alteridade, recurso privilegiado de alguns malditos, que não sucumbem ao medo de morrer no parto. Mas eis que uns fetos órfãos muitas vezes sobrevivem, trazendo pros olhares atentos um respirar atônito que sustenta o passo adiante. Assim, eu, diante dos hippies reciclados e seus sorrisos mórbidos, opto pelo mar.

Almoçando com o amigo. Reclama que seu paciente não pode, não deveria, beber ao pilotar um avião com tantos passageiros. Pergunto se ele já o atendeu cheirado. Se ofende, olha pro lado pedindo clemência pra o que quer que fosse e diz que sim, mas era só um pouquinho, só pra ficar ligado, pra prestar mais atenção aos pacientes, que o pó o ajudava a lembrar dos nomes da medicação etc etc etc. Eu digo que se o paciente dele pilota um avião bêbado e seu terapeuta o atende cheirado, eles estão equivalentes. Digo isso com um sorriso contido, perversão leve que finjo julgar necessária. O velho Sigmund, que nunca gostou de estardalhaço, proibiu qualquer criancice fora de hora. Eheh: alguém precisa lembrar que as criancices assim são por serem justamente fora de hora... Meu amigo, eivado de um ódio já adormecido pelos trâmites da civilização, me condena: “careta”! Olho para mim, não que eu seja careta, respondo, apenas negocio com vagar com meus demônios... Acusado agora de medieval, enuncio que os meus demônios poderiam ser mais antigos ou mais contemporâneos. Observo o meu amigo, tentando fazer com que meu dissecamento seja sutil aos seus olhos. Sua investigação da alma humana fracassou, o deixou por demais cético. Hoje ele é o traficante legalizado, que se sustenta financeira e existencialmente ao trocar dores e angústias por substâncias químicas. Passa-se nas farmácias como se ia à igreja, mas agora se comunga comprimidos. Se a depressão é a nova histeria, criar sentido pra vida é uma tarefa quixotesca. Antes que confunda o meu amigo com Sancho Pança, me despeço de sua autoridade sináptica; não antes de sua ex-mulher lhe telefonar sôfrega, bradando que o menino repetira de ano.

E ela com sua loucura de hora marcada. Ligou, marcou no bar da esquina, como de costume. Ficou reclamando do chopp morno, do aluguel, do calor, que queria viajar, que seu cigarro estava acabando, que a mãe não falava com ela e por aí vai. Eu olhava hipnotizado pelos movimentos das suas mãos, pequenas, macias, desnorteadas e coreografadas ao mesmo tempo. Lembro que quando a conheci, estava passando pelo pub e a melodia do rock inglês me fez entrar, aquele paradoxo em que os hinos das desesperanças nos transbordam de esperança. Extasiei com o estupor em que ela cantava os versos e dançava fazendo o mundo se adequar à dança. Aproximei, cantando também, conversando através de slogans que o som e movimento na pista permitiam. Depois da minha segunda investida, ela quase acariciou o meu rosto e me disse com um ar titubeante e profético que nós nunca poderíamos ficar juntos, ela dizendo que vende o corpo. Não sei por onde meu preconceito andou naquela noite, mas eu disse que tudo bem, porque eu vendo amor. “Que horror!”, ela, em seu próprio moralismo, manifestou espontaneamente. Depois disso, trocamos telefones e nos encontramos de vez quando, quase sempre quando ela quer. Disse que era brincadeira, que não era “profissional”, que era enfermeira, eu respondi que tudo bem, que isso é um fetiche comum. Fizemos um pacto inaudito em que fingiríamos uma crença mútua. Fomos, claro, pro meu apartamento, final óbvio dos nossos encontros no bar da esquina. Nunca lembro bem do nosso sexo, é quase fantasmagórico. Essa noite, talvez porque eu tenha sido um pouco mais cuidadoso na escuta, estávamos mais próximos, pois nunca seu olhar foi tão explícito como nessa noite. As vias de acesso do mais íntimo estavam abertas, com as placas de “cuidado” ainda expostas. Acordei, o cheiro de perfume com suor no outro travesseiro era a evidência que algo mais do que fantasmagórico tinha ocorrido ali.

De galho em galho, ainda conjurando possíveis improváveis. Meus vizinhos escutam aquela música, cujo autor não se decidia entre orgulho e desespero em relação a sua favela. Minha atitude revolucionária foi aumentar o volume do filme, que denuncia as redenções que eu não tive: filme ruim me convida a ser protagonista da minha vida, filme bom problematiza o esquecimento diário da minha ubiquidade cósmica. O cinema é o encapsulamento do sagrado, comido com pipoca sabor isopor. Acreditando ser o cinéfilo um onanista sacrofóbico, desligo o aparelho antes do segundo crédito final. Sento no canto da sala, agora trevas. Olha da janela, o horizonte não inspira. Suscito um cosmos em mim, pequena guerra de intuições. Alguns impulsos vasculham lacunas de ser; menos sensação de dever cumprido do que um sentido qualquer pra fora, descambando de mim.


Um comentário:

Carol Grether disse...

A cada conto, um ponto.. . Adoro seus textos Nelson.
Nada previsíveis, 'as vezes agressivos e bastante realistas tal qual a pipoca isopor. É seu estilo..
Introdução com Guimarães Rosa salva a lavoura(dos leitores), quanta doçura e sensibilidade este homem tinha!!!

Lembrei de " Crônicas de um amor louco", filme. Vc viu? se nao, recomendo muitíssimo!(sim, eu sempre me lembro de alguma coisa)